Tem uma música da Lingua Ignota chamada I am the beast que traz os seguintes versos: All I want is boundless love / All I know is violence (Tudo que eu quero é amor sem limites / Tudo que eu conheço é violência). Durante a leitura de A vida real (Editora Nós, trad. Letícia Mei), essa música não saía da minha cabeça e acho que é um resumo do que o livro aborda.

Na orelha, Ana Lima Cecilio diz que é um romance de formação, quase que uma fábula. Concordo. Dieudonné escreve de uma forma que me lembrou bastante as mulheres latino-americanas: histórias de família envoltas na mais cruel violência, e que usam o fantástico para aplacar a dor. A protagonista tem um pai abusivo, uma mãe omissa e um irmão traumatizado, que acaba deixando as ideias do pai adentrarem sua mente. Aqui, a autora se vale de uma possível viagem no tempo para impedir que certa coisa aconteça e faça a família desmoronar.
A violência masculina está por todos os lados. Ela observa o comportamento de seu pai diante de sua mãe, de seu irmão diante de pequenos animais. A esposa de seu professor foi também uma vítima. Duas mulheres ao seu redor parecem levar uma vida boa: a vizinha jovem que tem um filho pequeno, e a mais velha, quase que uma figura materna amorosa. Ao longo do enredo as duas se tornam estranhas para a narradora: uma ela inveja, na outra ela perde a confiança.
O pai é um caçador, se orgulha da sua coleção de animais empalhados. Ela teme aquelas figuras, e teme ainda mais o que seu pai faria se não caçasse. A violência por vezes é direcionada à mãe, que aceita quieta. Seu amor também é direcionado para os animais, os vivos. A filha se diminuiu até quase sumir, para não ser vista e não ser alvo da ira paterna.
Há a pose de família perfeita, que o homem quer mostrar ao mundo, mas como sempre, é apenas uma fachada. Ele tem seus próprios traumas, ele chora, mas desconta essas frustrações na esposa. Ela fala para a filha arrumar dinheiro e fugir dali, que ainda há uma escapatória para a jovem. Mas ela não pode fazer nada sem antes ajudar seu irmão.
Comecei a ler esse livro num começo de noite e só parei pela madrugada, ao finalizar a leitura. Como comentei acima, a violência desse livro me levou diretamente à escrita de Mariana Enriquez, Silvina Ocampo e as demais, minhas preferidas. Todas as famílias infelizes são infelizes à sua maneira, mas a infelicidade de uma mulher sempre vai ser parecida com as das outras, não importa o continente.
Caralho, forte.
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