Há uns anos teve aquele boom das newsletters pessoais. Criei a minha e no começo enviava basicamente notícias do Leia Mulheres, links de textos e afins. Com o tempo eu transformei aquilo num diário puro suco dos blogs anos 2000. Eu falava da minha vida, de mim, dos meus gostos. Conheci várias pessoas legais por causa delas, mas um dia acordei com a sensação de que eu estava me expondo demais e cancelei a conta.
Desde então tenho pensado diariamente que eu gostaria de escrever mais esse tipo de texto pessoal. Meu amigo D. diz que o jeito que eu escrevo se assemelha à crônicas. Recentemente um amigo me convidou para escrever um prefácio. Mandei com o aviso “Escrevi do meu jeito, bem pessoal”. No fim, todos os meus textos sobre livros e filmes acabam tendo um pouco a ver comigo. Seria isso egocêntrico?
Na época original dos blogs 2000 eu conheci um cara que sempre fazia um paralelo entre a vida dele e os filmes que via, e eu achava aquilo sensacional. Todo dia eu acessava o blog para ver se tinha mais texto. Inconscientemente eu posso ter absorvido esse tipo de escrita? Talvez.
Nos últimos dias eu li dois livros que gostei muito: Fome, da Roxane Gay (trad. Alice Klesck) e Copo vazio, da Natalia Timerman. O primeiro saiu pela Editora Globo e o segundo pela Todavia. Num primeiro momento eles não têm muito a ver, mas ao terminar a leitura de ambos eu tive a mesma ideia: “Eu não posso escrever sobre esse livro sem falar de mim mesma”. Eu estou disposta a escrever sobre mim no meio dessa pandemia, em que nenhum pensamento está em ordem?
Fome é um relato autobiográfico da autora, e como sugere o nome, se refere a seu peso. Roxane Gay é uma mulher gorda, e pelo que eu lia dela no twitter, não me parecia ser uma questão. Mas ao ler esse livro entendemos que as raízes são muito mais profundas. Ela foi estuprada no início da adolescência e guardou esse segredo por muitos anos. Sua forma de lidar com o trauma era comendo excessivamente. Se seu corpo fosse gordo ele se tornaria uma armadura e ela não sofreria mais nenhum abuso.

Roxane entrou num espiral de relacionamentos abusivos, dietas e transtornos alimentares. A escrita sempre foi algo que a prendeu, então através dela ela conseguiu se expressar e ter bons empregos. Além disso, ela fala das dificuldades de ser uma mulher gorda nesse mundo que não nos aceita. Ela fala sobre o temor de que cadeiras quebrem, de não caber confortavelmente em assentos de avião e outras dificuldades.
Acho que esse é o livro mais triste que eu já li, que mais me abalou, justamente por ser tão próximo a mim. Eu não sou negra, sou uma gorda menor, mas me identifiquei com várias passagens, principalmente aquelas em que a gente se contenta com qualquer coisa por ser gorda (um eco de Carmen Maria Machado aqui). Traumas não somem do dia para a noite, é preciso paciência consigo mesma e torcer para que as pessoas ao redor não desistam de você.
Ao terminar essa leitura, peguei Copo vazio. Tenho gostado muito de ler autoras contemporâneas brasileiras e aqui não foi diferente. O livro começa com Mirela indo ao mercado com sua filha. Lá ela encontra Pedro, e entendemos que eles tiveram um relacionamento um tanto turbulento no passado. A partir daí a narrativa volta no tempo para explicar como a autora chegou àquela cena.

Mirela conheceu Pedro num aplicativo de flerte. Ficaram juntos e tudo parecia lindo, até que ele sumiu. Ela ficou inconsolável, desesperada. Uma clara representação de como relacionamentos não são nada saudáveis hoje em dia. Li esses tempos um livro meio bobinho em que a autora falava sobre amor em tempos de aplicativos e tal, dessa dinâmica de escolher pessoas num cardápio, conversar até achar outra melhor e seguir adiante.
Isso é algo muito bizarro, mas infelizmente me parece o único meio de conhecer pessoas. E há esse jogo, essa coisa de simplesmente desaparecer, e tudo bem, são os tempos modernos. No caso da protagonista do livro eu nem creio que seja amor, ou algum sentimento bom, é apenas obsessão pela dinâmica. Quando ficamos obcecadas por alguém parece que nunca mais vai existir ninguém como essa pessoa.
Óbvio que isso não é correto, há milhares de pessoas melhores, outras situações menos doentias do que aquela, mas a obsessão cega os olhos. É impossível se divertir, sorrir, trabalhar, fazer qualquer outra coisa que não seja pensar na pessoa. E o mais curioso é que a obsessão parece morrer do dia para a noite. Chegam a ser anos nesse caos, para um dia acordar e se ver livre.
Eu acho uma bosta estar inserida nessa dinâmica, assim como acho uma bosta que meus traumas guiem meus pensamentos. Mais bosta ainda é pensar nessa sociedade lixo que não aceita corpos como o meu, que marginaliza os corpos maiores e não-brancos. Ler esses livros em tempos de pandemia é um soco no peito, me deixa triste e sem um vislumbre de que as coisas vão melhorar.
Falei que não queria escrever sobre esses livros porque teria que falar de mim. Pois bem, um texto inteiro falando deles e de mim.
O fato de escrever sobre você te ajuda a encarar e superar. Saiba que aprendo muito lendo seus relatos, pois vou me analisando também . Parabéns, perfeita, como sempre. Tenho muito orgulho de você ♥️😘
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Não sabia que dava para comentar o blog, nem sequer sabia que você tinha um blog. Acho que encontrei sua newsletter no Twitter, e desde então ela me alegra muito desde que chega a na minha caixa de entrada. Vou passear por ele depois 🙂 Como você, sou de seguir blogs; inclusive fiquei curioso sobre o blog que fazia relações do filme com a vivência do autor. Lembro de muitos blogs que me marcaram, e tenho amigos dessa época que duram até hoje, há mais de 10 anos.
Os textos mais pessoais são os que mais me marcam. Eu reconheci o eco do livro da Carmen Maria Machado antes de você abrir o parêntese, mesmo tendo lido sua resenha há um tempinho.Isso vale mesmo para textos que eu já li: é tão interessante ver como algo marca as pessoas de maneiras distintas, e tem significações distintas para pessoas diversas. Se a literatura nos permite viver outras vidas, essas resenhas pessoais acabam fazendo o mesmo.
Nunca usei aplicativos de relacionamentos para valer, mas um amigo meu me disse que passou pelo que você relata dessa sensação de cardápio. Inclusive algumas pessoas davam match só para atacá-lo. As primeiras mensagens eram falando que ele não devia estar ali, e fazendo ataques ao corpo dele. Os relacionamentos de antes, com uma assimetria de poder ainda maior que a de hoje, muitas vezes aprisionavam mulheres em situações de abuso inescapáveis. Hoje, isso diminuiu um pouco, mas acaba que as possibilidades geradas pelas novas dinâmicas sociais e tecnologias dão boas-vindas a novos tipos de abusos, ou novos meios de fazer abusos antigos. Há tanto a se evoluir.
Se você decidir fazer textos mais pessoais, ou fazer mais textos pessoas, ficarei ainda mais ansioso sempre que ver a notificação na minha caixa de entrada 🙂
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Que comentário bacana!
Muito obrigada por tirar um tempinho para ler meus textos.
E pode deixar, a ideia é me expor bastante aqui com a desculpa de que estou escrevendo sobre livros haha
Beijos
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Não acho egocêntrico falar de si ao falar daquilo que nos move. Gosto menos de textos que não se relacionam com a vida de quem escreveu. Egocêntrico mesmo é parecer inabalável diante das coisas, ainda mais, diante da arte. O mundo inteiro já me nega o direito à existência. Se eu não puder falar de mim, quem vai falar?
Estou amando te acompanhar por aqui. Continue. ❤
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Dia, que honra ser lida por você!
Beijos
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Honra minha te ler. ❤️🧡💜
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