Minha adolescência foi um tanto quanto complicada. Eu achava que era “um dos caras”, tinha comportamentos como os deles para ser aceita. Deixei de aprender e entender muita coisa nesse período, demorei anos para me ligar de algumas merdas que eu tinha visto ou passado. Nessa época tive meu primeiro amigo gay, e ele me contava na maior naturalidade que saía no soco com o namorado. Ele dizia “ah, somos dois homens, é normal” e eu acreditei. Eu tinha zero noção de relacionamentos abusivos entre casais hétero, e muito menos entre duas pessoas do mesmo gênero.
Pensei muito nessa história enquanto lia Na casa dos sonhos, livro de memórias da Carmen Maria Machado, que chegou ao Brasil neste ano, com tradução da Ana Guadalupe, pela Companhia das Letras. Eu gostei de seu livro de contos, que eu resenhei aqui, mas não caí de amores. Aqui sim, a cada página uma identificação e um aperto no peito.

Neste livro, Carmen nos conta sobre seu relacionamento com uma mulher extremamente abusiva. A autora é gorda e em determinado momento nos diz “Parte do problema foi que, como uma mulher gorda e esquisita, você sentiu que teve sorte”. Já estivesse nessa posição num relacionamento hétero, foi difícil entender que uma mulher poderia fazer as mesmas merdas que um cara.
A escrita da Carmen é bastante experimental, assim como eu já havia notado nos contos. A casa dos sonhos, do qual o título trata, é a própria mulher com quem ela se relaciona. Uma namorada é alguém com a qual você deve se sentir segura e protegida, uma casa. Cada capítulo é um fragmento de sua história, intitulada “Casa dos sonhos como…”. Esses fragmentos do passado se juntam ao presente, criando a história dessa relação. Ela comenta que esse jeito de escrever veio da incapacidade dela de criar uma história mais longa. Não acredito, acho que esses cortes são essenciais para o tom de sua narrativa.
Como todo relacionamento, esse começou “perfeito”, entre muitas aspas. A mulher estava num relacionamento, Carmen aceitou fazer parte disso e até se via em plena harmonia com as duas. Tudo corria bem, até que a mulher decidiu ficar apenas com Carmen, quis um namoro fechado e assim começou a dita vida dos sonhos. Até um dia em que ela foi ao banheiro do trabalho, encontrou uma mulher chorando e parou para ajudá-la. Carmen ouviu todos os xingamentos possíveis da namorada por causa da demora e ficou surpresa com aquela ira.
A autora passa então a viver em ansiedade constante, sempre com medo de não corresponder às expectativas da companheira, de magoá-la de alguma forma. Ela se sente culpada por tudo que dá errado. Quando os ataques passam a ser físicos, Carmen a convence a procurar ajuda, pois ela diz não se recordar da violência que cometeu. Ela frequenta a terapia por algum tempo, depois diz que não precisa mais. E a violência recomeça.
É desesperador ler esse tipo de coisa e perguntar “Por que você não foi embora?”. Não é fácil, quando se está num relacionamento abusivo, você não enxerga as coisas claramente. Você se questiona sobre suas próprias verdades, e no caso de Carmen (e meu), se você é esquisita e gorda, você tem que aceitar aquilo, porque você teve sorte, não vai encontrar nada melhor. Doloroso, eu sei, mas infelizmente mais comum do que imaginamos.
Tive muito mais facilidade com este livro do que com o de contos, tanto que li as mais de 350 páginas em duas noites. Muitas pessoas dizem que vão devagar com livros pesados, eu não, quero terminar logo, saber o porquê de tudo aquilo. Em Na casa dos sonhos eu não soube. Talvez um leve spoiler, mas hoje Carmen é casada com Val, aquela que namorava a mulher da casa dos sonhos. Nos agradecimentos a autora disse que faria tudo de novo, apenas para poder conhecer a atual esposa. Isso me doeu, não há amor algum no mundo que valha tanta dor.
Pelo seu relato deve ser muito bom. Vou ler
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parece ser um livro que mexe muito com quem, infelizmente, já viveu em um relacionamento abusivo. a sua reflexão no final foi bem tocante, será que vale mesmo sofrer tanto assim? isso me faz pensar naquela ideia de que um relacionamento precisa ter dor para valer a pena.
enfim, não muito relacionado com o livro, mas me deixou refletindo. 🙂
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