No começo da quarentena a querida Maria Muller me indicou o livro Senhora Caliban de Rachel Ingalls. Numa rápida pesquisa, vi que a novela havia sido publicada aqui pela Art Editora em 1987, com tradução de Carlos Bertolozzi. Aliás, um rápido parênteses para dizer que essa editora tinha uma coleção chamada As Escritoras, que além da Ingalls, publicou autoras como Christa Wolf, Emily Brontë, Carolina Nabuco e outras.
Senhora Caliban traz Dorothy, uma dona de casa que está sofrendo pela perda de dois filhos, e pela ausência do marido, que ao invés de compartilhar com ela a dor, começa a traí-la. Dorothy leva uma vida monótona, faz as coisas de casa, conversa um pouco com a vizinha, serve de anfitriã para os convidados do marido.

Um dia aparece no jornal a notícia de uma criatura que havia fugido de um Instituto de Pesquisa Oceanográfica. Essa criatura era chamada de “Aquarius, o Homem-Monstro”, capturada há seis meses na América do Sul. Descrito como um lagarto gigante, capaz de viver sob a água e na terra, ele era extremamente perigoso e todos os moradores da cidade deveriam tomar cuidado.
Certa noite Dorothy estava preparando uma salada para o jantar quando a tal criatura apareceu na sua porta. Ela viu na mesa uma faca e pensou em pegá-la, mas ao invés disso ela ofereceu um legume para ele. Dorothy decidiu ajudá-lo e o abrigou em casa. O marido, sempre ausente, não notou que havia um convidado na casa.
Seu nome não era Aquarius, mas sim Larry. No Instituto ele foi submetido a testes humilhantes e dolorosos, e ele só cometeu atos de violência para se salvar. Dorothy e Larry criam então laços e ela promete fazer de tudo para que ele possa voltar em segurança para seu lar.
Os dois se envolvem amorosa e sexualmente. Larry é tudo que seu marido não é. Ela fica mais feliz e se sente bem pela primeira vez em muito tempo. Claro que há mais complicações na trama, mas esse é o básico, o tema central. E sim, ele te parece familiar. O filme A Forma da Água é exatamente assim. Fui pesquisar e descobri que há um livro, mas que foi escrito após o filme. Não há nenhuma menção à Senhora Caliban quando se fala do filme e eu acho isso meio absurdo. A obra de Ingells, publicada originalmente em 1982, não possui edições recentes aqui no Brasil.
Caliban, filho da bruxa Sycorax, é um importante personagem da peça A Tempestade de William Shakespeare. Há anos essa peça me persegue. Uma citação dela, “Hell is empty and all the devils are here” (O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui), aparece em várias músicas que eu gostava quando era mais nova. Há um livro da Margaret Atwood, Semente da Bruxa, que é um reconto da peça. Tenho uma edição bem velhinha comprada em sebo e espero lê-la em breve. Depois de Senhora Caliban, acho que chegou a hora.
A novela de Rachel Ingalls é ótima de ler, traz alguns questionamentos sobre o papel da mulher perante a perda, que ela precisa estar sempre bem para que seu marido não se canse. Em poucas páginas a autora fala sobre casamento, luto, frustração, traição e sobre dependência. Espero que ela seja relançada, pois é uma ótima leitura.