As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez

Sempre brinco que um dos meus gêneros literários preferidos é o dos contos estranhos escritos por mulheres maravilhosas. E o livro que me fez criar essa categoria foi As coisas que perdemos no fogo de Mariana Enriquez (tradução de José Geraldo Couto). A escritora argentina nasceu em 1973 e este foi seu primeiro livro lançados no Brasil pela Intrínseca (o segundo foi o romance Este é o mar, traduzido por Elisa Menezes).

Neste livro encontramos contos de terror, mas não daquele terror clássico de noites chuvosas, de portas rangendo e fantasmas cobertos por lençóis. O terror dela está na periferia de Buenos Aires, nos casais em constantes brigas, nas estranhezas das pessoas. Ao longo dos 12 contos, ela explora temas que são clássicos do gênero, há aparições, há barulhos de pessoas que ninguém pode ver, mas em 90% desses textos temos a ditadura bastante presente, não só a da Argentina. Num dos contos, “Teia de Aranha”, um mulher, sua prima e seu marido viajam para o Paraguai, e o enredo se passa durante a ditadura de lá. 

Na Argentina a ditadura teve fim em 1973, ano em que a autora nasceu. No Brasil foi até 1985, e no Paraguai até 1989. É interessante como Mariana usa a ditadura como plano de fundo na maioria de seus contos. Em “A Hospedaria” duas meninas resolvem pregar uma peça na dona do estabelecimento colocando pedaços de bife dentro dos colchões, para que os mesmos apodreçam e deixem o lugar empesteado com o cheiro ruim. A tal hospedaria havia servido como quartel militar nos anos de ditadura. Enquanto elas rasgam colchões começam a ouvir sirenes e passos de soldados, bem como veem uma forte luz. Seria imaginação delas? Uma recordação de tempos passados?

Alguns dos contos dela me lembram um pouco do que está sendo mostrado nos filmes de terror brasileiros atuais. Em “A Sombra do Pai” e “Morto Não Fala”, temos personagens que moram nas periferias e vivem vidas simples. Nos filmes antigos de terror são mansões mal-assombradas, pessoas ricas que são atormentadas por espíritos. Tanto nos contos de Mariana quanto nos filmes citados as pessoas simples que passam por essas situações. No conto “O Menino Sujo” temos como personagem principal um menino de rua que desaparece, levando sua vizinha a crer que foi assassinado. 

De uma forma pouco convencional, ela também aborda a clássica casa maldita no conto “A Casa de Adela”. Adela é uma menina rica que não tem um braço, logo, não tem muitos amigos e é motivo de chacota. Na rua em que ela e dois amigos seus, irmãos, moram há uma casa abandonada. Eles decidem entrar na mesma e encontram um espaço que lembra uma sala médica, com prateleiras repletas de dentes e o característico cheiro de um hospital. Adela é tragada por uma porta e desaparece. 

Dois contos passam a ideia de creepypastas, aquelas histórias de terror que rodam pela internet. São como lendas urbanas rapidamente propagadas em fóruns. No conto “Fim de Curso” Marcela é a garota estranha que um dia arranca as unhas durante a aula. Depois de certo tempo afastada retorna para a escola e faz um corte no próprio rosto. Claro que se espera que isso seja resultado de algum tipo de surto, mas não. Já em “Nada de carne sobre nós” a protagonista encontra um crânio humano na rua e resolve levá-lo para a casa. E fica obcecada por ele, conversando, dando nome, enfeitando. 

Em “O Quintal do Vizinho” a autora aborda a relação de um casal no qual a esposa está se recuperando um período de depressão. Ele não acredita, a chama de louca, principalmente quando ela diz ter visto um menino acorrentado no quintal do vizinho. 

O livro todo possui aquele tom que podemos chamar de bad vibe. São contos estranhos, tristes, mas acima de tudo, desconfortáveis. Eles não despertam medo, mas uma sensação estranha na boca do estômago, como se houvesse algo de muito bizarro naquelas páginas e que poderia saltar para nossos rostos. “Sob a água negra” é um bom exemplo, pois carrega todas essas características, além de tratar da violência policial contra pessoas pobres. 

O conto que dá nome ao livro encerra o livro. Ele me lembrou muito a história de mulheres no México que “enfeiam” suas filhas para que elas não sejam sequestradas e escravizadas pelo narcotráfico. Ele também aborda a questão da violência de homens contra suas esposas. Sabemos que a maioria dos casos de feminicídio acontecem por parte dos maridos ou homens conhecidos das vítimas. Mesmo que ele seja preso, as marcas dessa violência ficam, às vezes literalmente, em forma de cicatrizes de seus rostos. 

A escrita de Mariana não é fácil e não me atrevo a dizer que é para todos. Mas é para mim. As coisas que perdemos no fogo foi a minha melhor leitura de 2016, e relendo-o para escrever esse texto percebi novas camadas, como a presença do fantasma da ditadura. Uma argentina escreveu contos de terror e a história de seu país foi lembrada em várias da páginas, enquanto que a história do meu país parece cada dia mais esquecida. Dizem que devemos pensar em nosso passado sempre para que os erros não sejam repetidos. Concordo, e gostaria que o terror, gênero tão marginalizado, pudesse ajudar nessa lembrança aqui também.

3 thoughts on “As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez

  1. Eu também amo muito esse livro. Fiquei sabendo dele no Leia, infelizmente ele não ganhou a votação para o livro do mês mas gostei tanto da sinopse que assim que cheguei em casa comprei pela internet.

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  2. Eu já queria ler esse livro pelo pouco que tinha lido sobre nos perfis literários do Instagram, mas saber um pouco mais de cada conto me deixou muitíssimo ansiosa para lê-lo! Também gosto muito dessa escrita desconfortável. Acho que as minhas autoras preferidas escrevem dessa maneira, pois exprimem nem que seja um pouco do que é ser mulher ali. Ao mesmo tempo, lembrei de um livro escrito por um homem lendo seus comentários: “Você vai voltar pra mim”, do Bernardo Kucinski. Espero ler Mariana Enriquez em breve!

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