Eu sempre leio Stephen King para superar momentos difíceis. Li a biografia dele quando terminei um namoro, li It quando estava me adaptando ao antidepressivo. Nessa quarentena que li Doutor Sono, revi o filme do Kubrick e a série ruim de TV. Nada melhor do que King para me tirar da realidade por alguns instantes.
Terminei ontem o livro e precisava de outra coisa que me confortasse. Poesia. Olhei para a minha nova estante (emprestada) e Preocupações da Ana Guadalupe estava me esperando. Mais precisamente, me esperava desde 18 de fevereiro desse ano. Dia que conheci a Ana pessoalmente e tomamos cervejas, sendo que eu havia prometido para mim mesma que só tomaria um café. Começou a chover enquanto a gente conversava.
Eu nem me lembro como comecei a conversar online com a Ana. Sei que a conversa engatou quando surgiu o assunto terror. Assim como eu, ela ama o gênero. Engraçado que durante a cerveja falamos pouco disso. Não conseguimos marcar outra cerveja ou um café mesmo por motivos de pandemia. Que estranho é estar o tempo todo no quarto, só olhando para meus gatos e para as paredes manchadas.
Li Preocupações com um roupão nas minhas pernas e um gato deitado na minha frente. Uma mão segurando o livro e a outra na barriga macia dele. Essa é uma imagem de conforto, mesmo lendo a poesia dolorida da Ana. Acho que temos um senso de humor parecido, meio autodepreciativo, meio que rindo da desgraça. Adília Lopes também é assim. É meu senso de humor preferido.
As poesias da Ana falam do cotidiano, falam de coisas comuns, carregam o senso de humor e a tristeza, com um mesmo equilíbrio. Quer dizer, para mim. Ela pode discordar, uma pessoa mais triste que eu pode ver de outra forma. O que será que uma pessoa feliz acharia dos poemas? Existem pessoas felizes? Eu não conheço.
Ana fala de musgo, de vermes, de virose e de desconforto. Ela foi infeliz em Santa Catarina, eu fui infeliz em São Paulo, na zona norte. Em Pinheiros nem tanto. Incômodo sim, tristeza sempre ali escondida, nunca dando as caras enquanto havia luz do sol. Acho que os remédios finalmente começaram a fazer efeito. São Paulo é cara, o medo pesa para a poeta e o medo rouba a energia. Para mim também pesa.
Num dos poemas ela fala vamos perder o contato / já que não há motivo para mantê-lo. Nesses vários dias de isolamento tenho relembrado várias pessoas. Algumas que parei de falar porque quis, porque elas quiseram, porque a vida não deu brecha. Num dia está tudo bem, no outro não está mais. Sinto falta até de quem não devia sentir.
Eu tenho um grupo de Telegram com dois amigos que nunca vi pessoalmente, mas já abri meu coração para eles diversas vezes. Meu amigo disse mais cedo que estava paralisado hoje, que a cama tinha um ímã. Li a mensagem e voltei para o livro da Ana. Me deparei com os versos:
alguns têm a praia à disposição
outros predisposição
à paralisia (pág. 43)
Passei pelo trecho, tirei uma foto e mandei no grupo. Meu amigo disse “eita…pegou no peito”. Pegou não, chutou. Tenho pensado em praia, feito planos, vendo valores de pousadas. Quero ir com duas pessoas específicas, em ocasiões distintas. Sei até que praia quero visitar. Eu que nunca fui do sol, mas sou da água.
Sempre disse que não gosto de flerte. Quero conhecer a pessoa e pular logo para a parte em que estamos no sofá numa tarde de domingo vendo qualquer filme, um acostumado com o outro. Hoje não, hoje quero a novidade, quero conhecer, aprender, sentir os cheiros. Conhecer os espaços e as rugas.
no conforto
os velhos namorados
ficam desconfortáveis (pág. 58)
Poesia é uma caixinha de surpresas. Eu ganho livros, compro e nunca sei o que me espera. Tenho medo de ler e não sentir nada. Percorrer os olhos pelas palavras, fechar o livro e colocar na pilha de doação. Me dói a poesia desperdiçada. Ana escreve:
com um poema simplório
o poeta disfarça pretensão
só escreve em caso de tédio
e se rima ruim é por opção (pág. 17)
Ana rima bem. Não desperdiça a palavra. Fechei o livro e guardei na estante, com a certeza de que vou ler de novo. Meu poema preferido se chama “Morri”. Mas não vou reproduzir aqui. Comprem o livro, leiam. Leiam mulheres, principalmente as independentes e que publicam por pequenas editoras. Leiam. Ler acalma. Ler faz o tempo passar e amansa o desconforto.
Imagem do post: The Stroll (1943) de Getrude Abercrombie.
Você escreve de uma forma incisiva, clara e chocante. Acabei visualizando a narrativa como se estivesse dentro dela. Aqui aproveito para citar sua avó Maria “felicidade não existe, o que existe são os momentos de felicidade”. Ela não tinha estudos, mas era de uma sabedoria imensurável! Parabéns por tudo o que você se tornou filha, tenho muito orgulho de ser sua mãe . Te amo ❤️
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