lamber juntas nossas feridas

Há quase dois anos eu escrevi sobre o livro Ultraviolenta de Pilar Bu. Retorno para falar de seu novo trabalho, Bruxisma, publicado pela Editora Urutau. Domingo eu fui para a casa dos meus pais ouvindo o podcast You Must Remember This sobre a Theda Bara. Chegando lá, sentei com a Stella ao sol e li Bruxisma de uma tacada só. Sei que poesia a gente tem que degustar aos poucos, mas quando eu gosto do que leio, não consigo. Quero devorar os versos.

Como eu disse naquele primeiro texto e em tantos outros, eu sou feita de conexões e obsessões. No momento só consigo pensar na era de ouro de Hollywood. Sempre fui fascinada pela história de Theda Bara. Ouvir o podcast sobre ela no mesmo dia da leitura de Bruxisma teve uma ligação especial. Theda foi a primeira vamp do cinema, a primeira gótica, a mulher destruidora de lares. E era tudo uma encenação. Perdemos os seus filmes (apenas A Fool There Was sobreviveu ao tempo), mas temos as lendas. Theda não gostava de sair à noite, ela preferia ir para casa ler.

A imagem que Theda passava de mulher independente e segura de si para nós hoje significa muito, mas naquela época ela era a encarnação do mal. Penso que a bruxaria e o feminismo sempre andaram de mãos dadas, principalmente no sentido de mulheres estarem no centro, sem uma figura patriarcal para adorar. Não somos regidas pelo medo, e sim pela comunhão e pela liberdade de escolha.

Assim como em seu livro anterior, Bruxisma também é cheio da cor vermelha, do corpo e do feral. Enquanto em Ultraviolenta Pilar exala remete à violência e revolta, este aqui me parece uma vingança muito bem planejada.

pilar bu

abrimos a porta
do inferno
não voltamos mais. (pág. 15)

Demorei a me considerar feminista, todo mundo ao meu redor já falava de questões ligadas às minorias. Nós começamos a falar sobre as coisas, começamos algumas mudanças. Agora nós exigimos, cansamos de pedir. Lugares que eu menos esperava hoje debatem essas questões. Com o Governo que temos, essas exigências precisam aumentar cada vez mais, e ainda bem que as portas estão abertas e não se fecharão mais.

O poema “Poção” fala de ancestralidade, das mulheres de nossas famílias. Cada família é infeliz à sua maneira, e muito disso está ligado a como as mulheres foram tratadas. Minha vó apanhou quando estava grávida da minha mãe, e foi obrigada a viver com o agressor pelo resto da vida. Minha mãe casou de branco, na igreja, enquanto eu não tenho sequer uma peça branca de roupa. Mas o sangue corre com a mesma cadeia de DNA.

eu e minha tristeza
andamos de mãos dadas por aí 
pegamos ônibus
fazemos feira 
tomamos sorvete (pág. 62)

Dói ser mulher. Literalmente. Dói o útero, dói o pé com o salto 15, dói a barriga com a calça apertada, dói o couro cabeludo por causa da chapinha, dói a cabeça de ouvir tanta merda. Dói o rosto de sorrisos falsos, dói a mente com os xingamentos, cantadas, interrupções de homens que querem nos explicar tudo. É triste ser mulher.

qualquer homem medíocre 
vende mais livros  do que eu (pág. 78)

E é chamado para mediar mesas literárias, para traduzir novidades, para falar sobre filmes de terror. Às mulheres fica o papel de falar com outras mulheres, de falar sobre o que é ser mulher na literatura, sobre o papel da mulher no terror. Mulheres falam das mulheres, porque desde sempre os homens falam deles mesmos.

viver sem dor é privilégio 
privilégio que bicho fêmea
não tem desde o nascimento (pág. 108)

E a gente se acostuma com a dor, mas também nela se fortalece. A gente se fortalece umas nas outras, na nossa poesia, nos nossos livros, nas nossas conversas. Como eu sempre digo, para mim, poesia não se explica com teorias literárias. Poesia é sentir os versos, se identificar, ter a sensação de que foram escritos para você. E com Pilar é assim, cada verso é dela, é meu, é nosso.

 

 

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