só leio o que rasga a minha carne

Para mim ler sempre foi uma atividade solitária. Passar os dias curtos de inverno, nas férias de julho, com um livro da Agatha Christie e um cd do Placebo no discman. E era isso, minha experiência de leitura acabava ali quando eu fechava as páginas. Isso mudou com os anos, quando comecei um blog de Literatura e conheci pessoas que gostavam de ler. Uma das partes mais legais é que conheci escritores. Ainda acho estranho ser amiga das pessoas que eu leio, terminar um livro e mandar uma mensagem contando o que achei ou perguntando alguma coisa.

Com a Jarid foi assim. Eu a conheci por causa de seu livro de cordéis e desde então nos tornamos amigas. Quando ela me disse que estava terminando um livro de poesias eu não poderia ficar mais feliz. Um buraco com meu nome, esse é o nome do livro, e ela me perguntou o que ele me fazia pensar. Escuro, proteção, falta de ar, sujeira, vazio, silêncio. Essas foram as palavras e sensações que vieram à minha mente.

Sylvia Plath é minha poeta preferida, divido essa predileção com a Jarid. Gosto muito de ler os poemas da Sylvia enquanto a escuto narrando os mesmos. Mês passado Jarid fez o lançamento do livro aqui em São Paulo, e antes da sessão de autógrafos ela leu alguns de seus poemas. Ela também falou de como a poesia dela é acessível, de como qualquer um pode ler e entender. Poesia não tem que ser difícil.

Assim como leio Plath pensando na voz dela, terminei Um buraco com meu nome pensando na voz de Jarid. Como ela mesma diz, são poemas de bad, mas também são poemas sobre resistência, sobre racismo. Alguns são dedicados a mulheres sensacionais que também admiro muito. Ao mesmo tempo que são poemas de uma dor pessoal, senti como se fossem para mim. O livro todo me trouxe a sensação de “É isso”.

Ele é todo ilustrado por Jarid, carvão, traços fortes, desconexos, mas que se encaixam perfeitamente nos poemas. Ela mesma disse que são “feios”, mas isso é muito relativo. A dor não é bonita, alguns sentimentos são horríveis e acho interessante vê-los em imagens. O belo sempre nos é mostrado como branco, como claro, como suave, mas às vezes a gente tira beleza da dor, do sangue, das lágrimas, do suor.

Eu tenho uma coisa com poesia que é ficar com certas frases na cabeça. Da Plath é And like the cat I have nine times to die (essa virou tatuagem). Do T. S. Eliot é I will show you fear in a handful of dust (que virou uma música do Rudimentary Peni). Da Jarid são várias.

Ela fala sobre ser uma coragem desistir. Eu tenho aprendido a ter essa coragem, largar pelos cantos aquilo que é difícil, porque a vida passa, a saúde satura e tudo acaba. O que me remete ao Bukowski e ao Beckett. O primeiro não me interessa mais, mas depois de anos de leitura e uma marca na pele, ele ficou.

um útero é um sarcófago, assim com letras pequenas. 31 anos, sem caminhos e ideias de uma gestação, com o sangue espesso de todos os meses. Reli Carrie menstruada, pouco antes de pegar os poemas da Jarid.

só escrevo o que rasga a carne, ela diz. Eu só leio o que me rasga inteira, me dilacera. Escolho uma manhã de domingo para terminar de ver Sharp Objects. Gosto de ver a maquiagem borrada de lágrimas, o líquido que escorre das narinas, a saliva que sai do canto da boca, o cheiro azedo do suor, misturado com o álcool que sai dos poros e do hálito. O vômito que sobe pela garganta, uma tentativa de limpar o corpo, de purificar. A náusea, os remédios que encobrem os sintomas, mas não curam.

São poemas para sentir a dor do outro, uma dor que não conheço, nunca vou conhecer, mas consigo sentir a culpa dos anos nas minhas costas. Uma culpa que eu carrego sem reclamar, uma dor que eu tento amenizar como puder, pelo fato mais simples de não perpetuar.

meu peito é pesado / e quente / dentro de mim não faz / brisa. E nem lá fora. O calor de novo me torna refém de mim mesma. As tardes de sol me mantém dentro de casa e eu me sinto sufocada no meu próprio corpo. O fim do ano se aproxima e com ele todas as exigências de tarefas cumpridas, vidas realizadas, desejos realizados.

Janela, parapeito, abismo, distância segura, observar de uma distância segura. Solidão, cidade cinza, barulho, mormaço, calor, ficar ofegante. Roupas pretas, pele marcada por cor e cicatriz. Angústia, peso, dor. Falhar, desistir, recomeçar. Quebrar, colar os pedaços, deformidade. Um buraco com nosso nome.

 

7 thoughts on “só leio o que rasga a minha carne

  1. “As tardes de sol me mantém dentro de casa e eu me sinto sufocada no meu próprio corpo. O fim do ano se aproxima e com ele todas as exigências de tarefas cumpridas, vidas realizadas, desejos realizados.” Sim. Eu ia escrever mais coisas, mas é isso aí.

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