Minha família toda é portuguesa, dos dois lados. Não tem uma mistura sequer para dar graça. Quando eu era criança eu não pensava nisso, no início da vida adulta veio um orgulho besta. Orgulho de que? Eu me pergunto hoje. É apenas um pedaço de terra habitado por gente.
Florbela Espanca foi uma das primeiras poetas que eu realmente amei, a ponto de decorar trechos (“Eu sou a que no mundo anda perdida…”). Talvez seja algo da minha genética que me faça estremecer com essa melancolia escancarada. Há alguns anos, uma amiga me deu de presente o livro da Mariana Alcoforado e disse que estava no nosso sangue gostar dessas coisas tristes, dramáticas e exageradas.
No final de 2016 eu vi o filme The Eyes of My Mother que eu cheguei a comentar aqui. Tem uma personagem portuguesa e toca Amália Rodrigues. Nunca me passou pela cabeça ouvir um fado num filme de terror. E não posso esquecer da Dulce Pontes e da música que abria uma novela quando eu era criança. O sotaque sempre foi estranho para os outros, para mim era o que eu ouvia todos os dias.
Há dez anos eu ouvia muita música, muita mesmo, o tempo todo e uma das grandes obsessões era o A Naifa. Duas são as músicas que ouço até hoje e os sentimentos todos afloram: Essa depressão que me anima e Dona de muitas casas. A maioria das músicas deles são baseadas em poesias de autores portugueses. Lembro que Linda Martini era outra banda que eu adorava, com sua Amor Combate, livremente inspirada em poema de mesmo nome do Joaquim Pessoa, que até onde sei, não tem nada a ver com o Fernando.
Quando se trata de mulheres de Portugal parece que a poesia está em tudo. Ano passado gravei um podcast sobre a Rita Azevedo Gomes e um dos seus títulos me chamou a atenção: Frágil como o mundo. Ele é trecho de um poema da Sophia de Mello Breyner Andresen, poeta que amo e que felizmente em breve terá livro lançado no Brasil.
Eu decidi ler apenas poesias de mulheres durante o mês de março. Comecei com o livro Manhã da Adília Lopes. Nem é março ainda e eu já tenho uma nova obsessão. Nele, Adília fala de histórias de família, costumes de infância e juventude, um pouco da vida adulta. É quase uma autobiografia em prosa poética.
O senso de humor dela em algumas passagens é sensacional demais. Fui pesquisar fotos e uma das primeiras que encontrei era dela com um gato. Já falei que me apaixono facilmente por escritores que gostam de gato? Foi assim com a Carmen da Silva e ontem mesmo com o Frank O’Hara, que é homem e não é português, mas tem foto com gato. E umas poesias incríveis que eu não consigo parar de revisitar.
Postei um trecho da Adília ontem no Instagram: Ter 20 anos não foi bom para mim. É melhor ter 50 do que 20. É assim para muita gente mas as pessoas não dizem essas coisas. Ela é uma das autoras que inspiraram músicas do A Naifa. Aí lembro daquela época, dez anos atrás, eu com 21 anos e achando que tinha o mundo nas mãos e que seria uma grande escritora. Lia muito Bukowski e me metia em enrascadas. Melhor ter 31 e um pouco de bom senso.
Eu, que sempre idealizei amor romântico, agora leio esses versos e dou aquela risada de canto de boca. eu detestava ter um namorado poeta / a fazer versos nas minhas costas
Não foi por estudar muito e por ler muito que adoeci dos nervos aos 21 anos, foi por viver num ambiente deprimente. O que me valeu foi ter estudado e lido muito. Estudar e ler é quase o melhor que há. Ao escrever esse texto fiquei pensando em quanto eu glamorizava a ideia da dor, e que quando se sente é difícil se livrar dela. Tristeza vicia, talvez por isso ela seja tema de tantas poesias.
Em outra passagem ela fala de quando leu a Selma Lagerlöf e ficou com vontade de ler um livro que a autora citava. Essa sou eu, querendo ler a edição portuguesa que eu tenho de O Cocheiro da Morte que está parada na minha estante há anos, desde que vi o filme do Victor Sjöström, que por sua vez eu conheci em Morangos Silvestres do Bergman.
Quis escrever logo sobre Adília e sobre essas ligações portuguesas que andam rondando a minha cabeça há mais de dez anos. A pilha de livros de poesia está grande e espero dar conta dela o quanto antes. Poesia vicia, talvez por conter tristeza. Gosto da poesia da dor.
Imagem de capa: Francesca Woodman
Vou ficar com essa ideia de tristeza como viciante. Sempre descrevi esse movimento de habitar a tristeza de maneira prolongada como um deixar-se levar, como ser sugada – nunca pensei no vício. E poesia vicia mesmo. Fiquei lembrando agora de O passado, do Alan Pauls, e aquela ideia de amor vício também, de amor como doença. A poesia parece ser exatamente isso, essa coisa maravilhosa que provoca uma revolta interna.
Pensa se Adília Lopes já não entrou pra minha listinha?
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Eu andei pensando bastante nisso de tristeza como vício. Na fase em que eu estava “melhor” eu sempre pensava que faltava alguma coisa. Aí eu tenho a poesia contendo isso.
Obrigada por sempre passar aqui, Liv!
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A princípio achei o filme The Eyes of My Mother estranho, mas com o passar do tempo fui entrando no clima e no final acabei gostando. Achei interessante o fato de um filme americano ter diálogos em português.
Você conhece o filme Coisa Ruim (2006)? Segundo o Wikipedia “Tem sido considerado a primeira longa-metragem de terror de Portugal”. Não assisti ainda, mas está na minha relação. Como você comentou sobre a sua ancestralidade portuguesa, acabei lembrando do filme.
E por falar em Portugal, você conhece a Rafaela Ferraz? http://rafaelaferraz.com/about/ Os textos dela não são necessariamente terror, mas tem uma certa relação com o conteúdo do blog, ainda mais depois da resenha do livro da Caitlin Doughty. Inclusive tem um texto da Rafaela no The Order of the Good Death http://www.orderofthegooddeath.com/attached-long-dead-portuguese-serial-killer
http://www.talkdeath.com/cemetery-overcrowding-leading-europe-recycle-burial-plots/
É isso! Até.
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Eu comecei The Eyes of my Mother sem entender direito, meio incomodada e no final me apaixonei pelo filme. Tenho até medo de rever e perder essa boa sensação! hahaha
Não conhecia o filme e nem a autora. Amei as indicações, muito obrigada!
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